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segunda-feira, 24 de maio de 2010

 A História da Medicina Privada Em Moçambique
Para fazermos uma análise histórica crítica da medicina privada em Moçambique temos primeiro que nos contextualizar e situarmo-nos no tempo, sob o risco de sermos ambíguos e difusos. Para tal, vamo-nos servir dum gráfico de tempo que nos ajudará a fasearmos os momentos históricos que vamos analisar. Antes porém, cumpre lembrar duas noções básicas que estão contidas no título do nosso trabalho história versus medicina privada.
Segundo a grande enciclopédia de ciências sociais (2000:347), “história é a ciência social que estuda a evolução da humanidade”, ou seja, é o estudo cientificamente elaborado do passado dos homens, o seu presente e tenta perspectivar o futuro.
A medicina privada é a parte de cuidados médicos e sanitários exercidos por pessoas colectivas ou singulares de direito privado, com ou sem fins lucrativos .
Para facilitar a compreensão dos fenómenos relevantes surgidos na medicina em Moçambique, procuramos agrupar as estruturas de assistência sanitária no país em três grandes momentos a saber (2.1.) período colonial, que cobre a segunda metade do século XIX até 1974, inclusive; (2.2.) período pós independência de Moçambique, que vai de 1975 até 1990, inclusive; (2.3.) período de 1991 ao presente. Analisemos sucintamente cada momento.

Período Colonial, meados do século XIX até 1974
Gulube (1996), na sua obra “Breve Historial da Medicina em Moçambique”, escreve que a organização dos serviços de saúde em Moçambique data da segunda metade do século XIX, com o surgimento das primeiras infra-estruturas sanitárias e normas para o seu funcionamento. Por volta de 1898, diz este autor, existia o sistema de organização dos serviços de saúde, com a província dividida em onze (11) distritos sanitários, possuindo cada distrito um hospital civil e um militar.

Segundo Gulube, os serviços médicos que o colonialismo português implantou em Moçambique faziam parte do sistema de exploração a que o povo Moçambicano esteve sujeito, caracterizado por um poder colonial facista e repressivo. A situação sanitária da administração colonial portuguesa reflectia, portanto, as características sociais e económicas do sistema capitalista. Os serviços médicos se caracterizavam pela primazia da medicina privada e lucrativa, seu caracter era essencialmente curativo.

O autor a que temos vindo a citar agrupa as estruturas da assistência sanitária que existam no país em cinco (5) categorias, que compreendem:

i. Serviço de Saúde e Assistência
Competia-lhe dar assistência médica aos funcionários assimilados, aos “indígenas” e dum modo geral a todos aqueles que não podiam ter acesso as outras formas de assistência médica. Estamos falando aqui dos hospitais comuns, ou se quisermos, dos hospitais estatais genéricos, tais como alguns dos actuais hospitais provinciais ou rurais.
ii. Serviços de Saúde Privativos de Entidades Estatais e ParaestataisFaziam parte destes as câmaras municipais, os correios, a direcção de exploração dos transportes aéreos (DETA) e outros. Tratava-se de serviços privativos destinados a garantir a certas camadas privilegiadas de funcionários uma assistência médica de nível superior a aquela que era fornecida á população em geral.
iii. Serviços de Saúde de Empresas Privadas
por um lado, destinava-se a dispensar uma assistência de saúde e laser a “casta” privilegiada da pequena burguesia, por outro lado, proporcionavam aos restantes trabalhadores da empresa a assistência individual para os manter e conservar a capacidade de trabalho.
iv. A Clínica Privada
Constituía a forma de assistência mais confortável para as classes mais abastadas.
v. Hospital da Universidade
A assistência médica prestada por este hospital destinava-se a desenvolver no seio dos trabalhadores de saúde e na “pequena burguesia nacional nascente” a mentalidade elitista da medicina privada e de tecnologia sofisticada.

Servindo-se dos estudos de Gulube e das evidências históricas presentes, podemos verificar que no período colonial na “província de Moçambique”, actual República de Moçambique, a assistência médica e sanitária era exercida paralelamente pelo sector público (estatal) e privado. A razão que explica este facto é o sistema vigente na altura. Devido as características políticas, ideológicas e económicas do regime colonial, o sector privado lucrativo era o predominante e este, tal como ocorre actualmente, estava concentrado nos grandes centros urbanos, seu mercado potencial.

Com a formação do Governo de Transição em 1974 foi crida uma comissão de restruturação e reorganização do sector de saúde. Ao proceder a análise da política colonial a comissão concluiu que:

a) O tipo de assistência médica e curativa organizado pelo regime colonial era discriminatório, tanto no aspecto social como no económico e geográfico.
b) O sistema possuía níveis de estruturação que garantiam segurança aos médicos e a muitos enfermeiros que exerciam as suas funções cumulativamente em instituições sanitárias privadas, para onde tinham tendência de consagrar o máximo do seu tempo, auferindo dai grande parte dos seus salários.

A partir de análise crítica da política colonial de saúde, a comissão propôs medidas que culminariam com a criação de bases organizativas do Serviço Nacional de Saúde com a independência de Moçambique, em 25 de Junho de 1975, registando-se profundas modificações no campo de saúde, que representam também uma rotura com o passado colonial.

É neste contexto político, económico e social, ditado pela firmeza d vontade de realizar acções de assistência sanitária que sirva os reais interesses do povo moçambicano, que a medicina foi nacionalizada em 24 de Julho de 1976 e foi interdita qualquer forma do seu exercício privado. Pela nacionalização da medicina, o Estado passou a assumir a responsabilidade da prestação dos cuidados de saúde á totalidade população, sem distinção.

Período Pós-Independência, 1975 – 1990
Neste período não se pode falar da medicina privada, pois o exercício desta fora abolido em 1976. Porém, na década de 80 o país experimentou um dos seus piores momentos de crise política, ideológica, económica e social. Dum lado, corria a guerra civil que fragilizou o tecido económico e social, com danos humanos e matérias incalculáveis, por outro, o sistema económico e social adaptado pelo então Governo de Moçambique ensaiava um colapso lento interna externamente. A desestabilização militar em curso nas zonas rurais foi coincidentemente concentrada na destruição dos progressos obtidos pela população rural no que diz respeito ao acesso á saúde. Em consequência disso, foi destruída cerca de metade de todos os postos os postos de saúde. Havia que se mudar de rumo e de estratégias. Os ventos de salvamento vieram do ocidente capitalista que impôs restruturação económicas económica, políticas e sociais.

O programa da Reabilitação Económica (PRE) que teve o seu início em 1987 e mais tarde (1990) introduziu a componente social passando a designar-se PRES, libertou os agentes económicos nacionais e estrangeiros, que passaram a ter um papel mais dinâmico no processo de reabilitação e desenvolvimento da economia nacional.

Dum lado, o PRES impulsionou o aparecimento de uma camada social mais rica, com consequente maior poder de compra. Este novo estrato social adquire hábitos de consumo o papel do Estado neste objectivo social. É neste contexto que surge a assistência médica por entidades privadas como um subsistema do Serviço Nacional de Saúde, que é analisada a seguir:

Período de 1991 até à actualidade
O actual modelo do Serviço Nacional de Saúde, ou Sistema Nacional de Saúde (abreviadamente designado por SNS) dependente do Ministério da Saúde, foi criado pela lei nº 25/91, de 31 de Dezembro.

O SNS é o conjunto das unidades sanitárias de formação e outras, dependentes do Ministério da Saúde, incluíndo as que foram nacionalizadas em conformidade com o Decreto-Lei nº 5/75, de 10 de Agosto, que concorrem para a prestação de cuidados de saúde à população (art.1). O SNS prossegue os seus objectivos através de acções promotivas, preventivas, assistenciais e de reabilitação, recorrendo à formação e pesquisa como meio para o seu desenvolvimento contínuo (art. 2). As instituições do SNS têm funções de supervisão, fiscalização e de apoio técnico às unidades que lhes são de nível inferior, sejam elas do sector público sejam do sector privado (art. 3).

No exercício da sua actividade, o SNS apoia-se com o subsistema de prestação da assistência médica e sanitária de entidades privadas, com fins lucrativos a não lucrativos, criado pela lei nº 26/91, de 31 de Dezembro.

A lei nº26/91 autoriza a prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos próprios ou domicílios do doente e o transporte de doentes, mulheres grávidas e parturientes, por pessoas singulares ou colectivas de direito privado com caracter lucrativo ou não. Este documento legal define, no seu artigo 3 que os estabelecimentos sanitários do sector privado complementam a acção do sector público e com ele colaboram.

Os artigos 4, 5 e 6 da Lei nº26/91, de 31 de Dezembro, apresentam respectivamente as condições gerais de autorização para o exercício da actividade objecto desta lei, o reconhecimento, o registo, os deveres e as obrigações das entidades autorizadas. Este dispositivo legal preceitua no artigo 7 que em caso de catástrofe ou outras graves emergências de saúde, o Ministro da Saúde poderá proceder a requisição dos profissionais de saúde e os estabelecimentos sanitários privados.

Os estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde privados em Moçambique, ao abrigo no nº 1 do artigo 8 da Lei nº 26/91, são classificados em:
a. Hospitais gerais e rurais,
b. Hospitais especializados;
c. Centros de saúde de local de residência;
d. Postos de Saúde de local de residência;
e. Centros e Postos de saúde de local de trabalho;
f. Clínicas e consultórios médicos;
g. Centros de reabilitação;
h. Postos de enfermagem;
i. Centros promoção de saúde;
j. Centros de formação de saúde; e
k. Centros de transporte de doentes.

Na prática, analisando o panorama do exercício da medicina privada em Moçambique pode-se, a partir da evidências empíricas, não obstante as por lei identificadas, identificar as seguintes estruturas organizacionais de assistência sanitária privada:

a. Prática do grupo multi-especializado com pagamento por serviços (referem-se as clínicas com várias especialidades. As clinicas Cruz Azul, da Sommerschild e 222 Urgências Médica Domiciliarias, são exemplos bastante conhecidos na cidade de Maputo);
b. Prática de grupo de especialidade única (referem-se as instituições com médicos de uma especialidade trabalhando juntos. Por exemplo, os consultórios médicos de cardiologia, estomatologia, dermatologia e outros);
c. Prática individual (refere-se a um médico ou paramédico que trabalha sozinho no seu consultório);
d. Centros de saúde de local de trabalho ou de residência (estes estabelecimentos estão adstritos as instituições de serviço que as criaram, ou em zonas residenciais, funcionando adjacentes aos edifícios da organização a que servem. São exemplos o Centro de Saúde das Linhas Aéreas de Moçambique e o da Polana Caniço);
e. Postos de saúde de local de residência ou de trabalho (prestam assistência médica sanitária aos funcionários do local de trabalho ou de residência onde estão adstritos. Este modelo é similar ao anterior. São exemplos o posto de saúde da Rádio Moçambique e o dos Caminhos de Ferro de Moçambique);
f. Centro de diagnóstico (prestam testagem diversas em matéria laboratorial);
g. Centro de transporte de doentes (funcionam como serviços de ambulância ou de táxi);
h. Clínicas especiais nos hospitais públicos (consideramos o atendimento em clínica especial num hospital público do SNS a prestação de cuidados de saúde curativos em regime de ambulatório e ou internamento em que há uma possibilidade de acesso diferenciado em termos de prioridade, conforto e escolha do médico ou técnico de saúde, mediante o pagamento de taxas moderadoras extraordinárias),

Todos os estabelecimentos aqui referidos são sujeitos á fiscalização pelas estruturas competentes do Ministério da Saúde e obrigam-se ao envio de relatórios periódicos de actividades, informação estatística, bem como de outras informações que forem solicitadas (n.º 3 do artigo 6 da mesma lei).
Outra base que regula a lei nº 26/91, é o decreto nº 9/92, de 26 de Maio. Este aprova o regulamento de prestação de cuidados de saúde por entidades privadas. Encontramos estatuídos neste dispositivo o reconhecimento de registo de unidades sanitárias privadas, reconhecimento de registo profissional, condições de início de funcionamento, complementaridade e colocação com SNS, características técnicas e funções específicas dos estabelecimentos sanitários privados, exercício de actividade farmacêutica e utilização de medicamentos, fiscalização e inspecção.
O Diploma Ministerial nº 78/92, de 10 de Junho, regula a actividade dos profissionais de saúde que pretendem prestar assistência médica ao domicílio do doente. Deste modo estão habilitados a prestar assistência médica ao domicílio do doente, profissionais de saúde formados em categorias profissionais de nível superior, médio ou básico em cursos reconhecidos na República de Moçambique.

É da competência do Director Provincial de Saúde autorizar a prestação de assistência médica ao domicílio.

A prestação de serviços de saúde por entidades privadas em Moçambique é parte do Sistema Nacional de Saúde, sendo um subsistema deste último. Sendo assim, os profissionais autorizados a prestar assistência ao domicílio do doente, só podem praticar actos da sua competência e perfil técnico- profissional constante dos respectivos qualificadores. Devem também, obediência as normas e princípios éticos e deontológicos exigidos para o exercício da sua profissão.

Por seu turno, o Diploma Ministerial nº 79/92 de 10 de Junho, estabelece normas e procedimentos para o reconhecimento e registo de grupos de profissionais. Compete, a nível central, ao Director Nacional de Saúde decidir sobre o reconhecimento e registo, depois de ouvida a comissão técnica do exercício profissional. Nas províncias, estão criadas comissões técnicas profissionais.

Segundo o artigo 3 do mesmo Diploma, compete as Direcções Provinciais de Saúde a organização do processo de registo, designadamente receber e instruir os pedidos de registo, notificar os interessados das decisões relativas aos pedidos, proceder ao registo e emitir certidões, proceder aos averbamentos previsto no Diploma.

Por fim, o Diploma Ministerial nº 98/94 de 27 de Julho, fixa as taxas e os emolumentos, os quais que os serviços privados devem pagar ao Estado. As taxas e emolumentos constituem receitas do Estado. Os valores em dinheiro a serem praticados profissionais do sector privado revertem para o Ministério da Saúde como receitas consignadas a fim de custear as despesas inerentes à aquisição de impressos e livros, despesas correntes com o corpo de inspecção, transporte e combustível bem como os demais serviços prestados aos interessados pelo exercício da medicina privada.

Convenientes e Inconvenientes da Privatização da Medicina
Depois desta incursão sumária dos dispositivos legais que regulam a medicina privada em Moçambique nos nossos dias, antes de tentarmos identificar e descrever de forma sumária os tipos de estabelecimentos organizacionais existentes actualmente no país virados a prestação de cuidados de saúde, apontemos algumas vantagens e desvantagens da medicina privada.

Convenientes
• Complementa a assistência sanitária prestada pelo Serviço Nacional de Saúde, em particular nos locais onde instalados esses estabelecimentos sanitários privados;
• Reduz uma parte da pressão que era exercida ao Sector Público, dum lado por parte dos trabalhadores, que reivindicavam parcos salários e do outro, da qualidade do atendimento e quantidade de pacientes que acorriam aos centros hospitalares público;
• Constitui fonte de rendimento de diversos trabalhadores que nele laboram, para os proprietários e para o Estado porque estes estabelecimentos pagam impostos e taxas;
• Oferecem possibilidades de escolha aos cidadãos que demandam os serviços de saúde, de acordo com as capacidades de compra de cada um;
• Concorrem para o equilíbrio macro-económico do país ao contribuírem para a elevação dos níveis de PIB, de vida e bem estar social da população em geral, e em particular nas zonas urbanas, seus mercados potenciais.

Inconvenientes
• Constitui por excelência um sector de legislação das desigualdades sociais, pois os mais desfavorecidos na sociedade sentem-se impossibilitados de aceder a assistência com os serviços públicos que, muitas das vezes oferecem baixa qualidade;
• Os profissionais de saúde do SNS tendem a referir os pacientes para os estabelecimentos privados para onde trabalham, como forma de lhe assegurar melhor atendimento;
• Alguns profissionais, por pressão de tempo e fadiga, tendem a despachar os pacientes nos estabelecimentos hospitalares públicos em detrimento do atendimento privado, por ser este último que lhes oferece vantagens pecuniárias imediatas.
• O fraco controlo dos recursos materiais nos hospitais públicos leva que alguns instrumentos médicos sejam desviados e vendidos aos estabelecimentos privados, gerando prejuízos para o Estado.

Pese embora estas desvantagens reconhecidas, acreditamos que não suplantam as vantagens da prática complementar da medicina privada em Moçambique. Subjacente a isso, há uma realidade básica que nos indica que os objectivos para os quais foi autorizada a sua intervenção no mercado da saúde estão sendo atingidos, tanto mais que o mercado, por si só, tem assumido a responsabilidade de legitimar este sub-sector de saúde.

Bibliografia

Enciclopédia de Ciências Sociais. (2000). Verbo editora, RJ.
GULUBE, A. (1996). Breve Historial da Medicina em Moçambique.

Legislação

  • Lei nº 25/91, de 31 de Dezembro de 1991 – Cria o Serviço Nacional de Saúde.

  • Lei nº 26/91, de 31 de Dezembro de 1991 – Autoriza a intervenção de entidades privadas na protecção de cuidados de saúde em Moçambique e fixa os princípios básicos para o exercício dessa actividade e as condições gerais de autorização, reconhecimento e registo dos profissionais, bem como os seus deveres.

  • Decreto nº 9/92, de 26 de Maio de 1992 – Regulamento de prestação de cuidados de saúdepor entidades privadas.

  • Diploma Ministerial nº 78/92, de 10 de Junho de 1992 – Regula a actividade dos profissionais de saúde que pretendem prestar assistência médica ao domicílio do doente.

  • Diploma Ministerial nº 79/92, de 10 de Junho de 1992 – Estabelece normas e procedimentos para o reconhecimento e registo de grupos de profissionais.

  • Diploma Ministerial nº 98/94, de 27 de Julho de 1994 – Fixa as taxas e os emolumentos, os quais que os serviços privados devem pagar ao Estado.

2 comentários:

  1. Obrigado pelo artigo. É dificil encontrar informação sobre a história de saúde em Moçambique. Gostaria de saber como poderei ter acesso ao livro A. Gulube, Breve História da Medicina em Moçambique. Procurei e não encontre e pretendo ter mais informação.

    Éden Mucache senhorparaiso@gmail.com
    Maputo

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  2. muito obrigado. Foi dificil encontrar rica informcao de Mocambique ligada a saude como esta.

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