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terça-feira, 4 de outubro de 2011

Resumo da obra “O futuro da democracia – uma defesa das regras do jogo” (1986), de Norberto Bobbio


Introdução

“O futuro da democracia” é dividida em 7 (sete) partes ou capítulos, sendo que cada capítulo representa uma aula/seminário iniciadas em Maio de 1984, nomeadamente: (1) O futuro da democracia; (2) Democracia representativa e democracia directa; (3) Os vínculos da democracia; (4) A democracia e o poder invisível; (5) Liberalismo velho e novo; (6) Contrato e contratualismo no debate actual; e (7) Governo dos homens ou governo das leis.

Em síntese, na sua obra Bobbio (segundo as suas próprias palavras) apresenta sinteticamente as transfigurações da democracia sob o formato de “promessas não cumpridas” ou de comparação entre a democracia ideal tal como criada por seus pais instituidores e a democracia real em que, com maior ou menor participação, devemos viver diariamente.

Capítulo 1: O futuro da democracia

Neste capítulo introdutor, Bobbio começa por admitir a impossibilidade de ver o futuro que, para ele, deriva igualmente do facto de que cada um dos homens desenha no futuro as próprias pretensões e excitações, enquanto a história avança o seu trajecto alheio às nossas preocupações, um trajecto na sua concepção, composto por milhões e milhões de minúsculas acção humanas que ninguém, mesmo o mais potente, nunca esteve em circunstâncias de apreender numa visão de conjunto que não tenha sido demasiadamente sintético, e logo, pouco evidente. Por isto que, conclui, as previsões feitas pelos grandes mestres do pensamento sobre o curso do mundo acabaram por se revelar, no final das contas, quase sempre falhadas. Por fim, Bobbio esclarece o objectivo/propósito do seu trabalho, o de fazer algumas observações sobre o estado da época dos regimes democráticos.

O autor apresenta igualmente uma definição mínima de democracia, que na verdade é constituída pelos seguintes elementos, designadamente:
  • Atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar directa ou indirectamente da tomada de decisões colectivas;
  • A existência de regras de procedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimidade); e
  • É preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder seleccionar entre uma e outra.

É necessário, assevera Bobbio, para que se realize a última condição, que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. Consequentemente, disto segue que o estado liberal é o pressuposto não só histórico mas jurídico do estado democrático. Quer dizer, é pouco plausível que um estado não liberal possa atestar um correcto exercício da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja apto de defender as liberdades elementares.

Adiante, Bobbio explica que a democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade, ou seja, da ideia para a qual – diferentemente à concepção orgânica, influente na idade antiga e na idade média, segundo a qual o todo precede as partes – a sociedade, qualquer forma de sociedade, e particularmente a sociedade política, é um resultado artificial da deliberação das pessoas.~

Bobbio  apresenta, por fim, seis (6) promessas não cumpridas da democracia, nomeadamente: (a) o nascimento da sociedade pluralista; (b) a revanche dos interesses; (c) o espaço limitado; (d) a derrota do poder oligárquico – nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de democracia; (e) a eliminação do poder invisível; e (f) a educação para a cidadania.

As promessas não foram executadas por motivo de obstáculos que não estavam prenunciados ou que emergiram em consequência das transformações da sociedade civil. Esses obstáculos são:
  • O aumento dos problemas políticos que requerem competências técnicas;
  • O ininterrupto engrandecimento do aparato burocrático, de um aparato de poder sistemático hierarquicamente do vértice à base, e logo absolutamente adverso ao processo de poder democrático; e
  • O rendimento do sistema democrático como um todo.

Quanto ao futuro da democracia, a conclusão de Bobbio não é pessimista: o futuro da democracia não é caótico.

Capítulo 2: Democracia representativa e democracia directa

Bobbio parte da premissa de Jean Jacques Rousseau, quando afirmou que a soberania não pode ser representada. O autor chama atenção para o equívoco sobre a diferença entre “democracia representativa” e “estado parlamentar”.

Bobbio apresenta o conceito de democracia representativa, que significa genericamente que as decisões colectivas – as decisões que dizem respeito à sociedade inteira – são tomadas não directamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para este intuito. Assim sendo, o estado parlamentar é uma aplicação particular, embora relevante do ponto de vista histórico, do princípio da representação, grosso modo, é aquele estado no qual é representativo o órgão central ao qual chegam as reclamações e do qual partem as resoluções colectivas indispensáveis, sendo este órgão central o parlamento. Em suma, o autor quer dizer que, do mesmo modo que nem todo estado representativo é um estado parlamentar, o estado parlamentar pode muito bem não ser uma democracia representativa.

Feitas as análises, para que exista democracia directa no sentido próprio da palavra (no sentido em que directo quer dizer que o indivíduo participa ele mesmo nas deliberações que lhe dizem respeito) é preciso que entre os indivíduos votantes e a decisão que lhes diz respeito não exista nenhum representante. De qualquer modo, se a representação por mandato não é propriamente a democracia directa, é uma estrada interposta entre a democracia representativa e a democracia directa.

Com um preceito sumário, pode-se afirmar que num sistema de democracia absoluto, as duas figuras de democracia são ambas imprescindíveis, mas não são consideradas em si mesmas, satisfatórias.

Capítulo 3: Os vínculos da democracia

Este capítulo é consagrado ao estudo dos eventuais novos sujeitos e para os eventuais novos instrumentos de intervenção, e acima de tudo, para as regras do jogo com as quais se desenrola a luta política num determinado contexto histórico. Após uma elaborada abordagem, Bobbio conclui que permanecendo-se nos termos das regras do jogo, as vias permissíveis de saída são as que são, e os passos indispensáveis para concretizá-las são calculáveis, quase, compulsivos. Sair das regras do jogo, posto que seja acessível, e que não é, mostra-se como algo que não seja apetecível, pois uma vez fendida a principal destas regras, a das eleições periódicas, não se sabe onde tudo cessará.

Capítulo 4: A democracia e o poder invisível

Nesta parte, Bobbio apresenta as dificuldades objectivas em que se encontra uma correcta aplicação do método democrático, exactamente nas sociedades em que continua a crescer a exigência de democracia.

O objectivo das suas observações não é o de fazer uma análise histórica das várias formas de poder invisível, mas o de confrontar com a realidade o ideal da democracia como governo do poder visível.

Fazendo uma abordagem sobre “o governo do poder público em público”, Bobbio considera que o princípio de que todas as deliberações e mais em geral os actos dos dirigentes devam ser sabidos pelo povo sempre foi considerado um dos eixos do regime democrático, definido como o governo directo do povo ou controlado pelo povo.

Mais ainda, considera o tema da descentralização compreendida como revalorização do relevo político da periferia com respeito ao centro. Interpreta o utopia do governo local como um ideal inspirado no princípio segundo o qual o poder é tanto mais visível quanto mais próximo está.

Contrariamente, argumenta, onde o supremo poder é oculto, tende a ser oculto também o contra-poder. A história de todo regime autocrático e a história da conjura são duas histórias equidistantes que se referem uma à outra. Onde existe o poder secreto existe também, quase como seu produto natural, o antipoder igualmente secreto ou sob a forma de conluio, complôs, conspirações, golpes de estado, tramados nos corredores do palácio imperial, ou sob a forma de rebeliões, tumultos ou insurreições arranjadas em lugares intransitáveis e inacessíveis, remotas dos contemplares dos residentes do palácio, assim como o príncipe age o mais longe possível dos olhares do vulgo. Então, o poder despótico não apenas encobre para não fazer saber quem é e onde está, mas propende também a esconder seus reais intentos no instante em que suas decisões devem tornar-se públicas.

O confronto entre o modelo ideal do poder visível e a realidade das coisas deve ser conduzido tendo presente a tendência que toda forma de dominação tem de se subtrair ao olhar dos dominados escondendo-se e escondendo, através do segredo e do disfarce. Bobbio conclui que a tendência não mais ruma ao máximo controlo do poder por parte dos cidadãos, mas ao contrário, rumo ao máximo controlo dos súbitos por parte de quem detém o poder.

Capítulo 5: O Liberalismo velho e novo

Discute o liberalismo a partir da reedição da obra clássica do liberalismo como On Liberty, de John Stuart Mill. Segundo Bobbio, o liberalismo é um movimento de ideias que passa através de diversos autores diferentes entre si, com Locke, Montesquieu, Kant, Adam Smith, Humboldt, Constant, John Stuart Mill, Tocqueville. O liberalismo é, como teoria económica, factor da economia de mercado; como teoria política, é factor do estado que governa o menos possível ou, como se diz hoje, do estado mínimo (isto é, reduzido ao mínimo necessário).

Entretanto, o liberalismo económico e o político são independentes porque a teoria dos limites do poder do estado não se refere apenas à intervenção na esfera económica, mas se estende à esfera espiritual ou ético-religiosa.

Deste ponto de vista, diz Bobbio, o estado liberal é também um estado laico, quer dizer, um estado que não se reconhece com uma destinada confissão religiosa (nem com uma determinada concepção filosófico-política, como, por exemplo, o marxismo-leninismo), e isto mesmo quando se considere que um estado pode ser laico, isto é, agnóstico em matéria religiosa e filosófica, apesar de ser intervencionista em matéria económica.

Enfim, o duplo processo de formação do estado liberal pode ser descrito, de um lado, como emancipação do poder político do poder religioso (estado laico) e, de outro, como emancipação do poder económico do poder político (estado do livre mercado). Através do primeiro processo de emancipação, o estado deixa de ser o braço secular da igreja; através do segundo, torna-se o braço secular da burguesia mercantil e empresarial. O estado liberal é o estado que permitiu a perda do monopólio do poder ideológico, através da concessão dos direitos civis, entre os quais sobretudo do direito à liberdade religiosa e de opinião política, e a perda do monopólio do poder económico, através da concessão da liberdade económica.

Adiante, Bobbio assume que o estado mínimo insurge-se contra o estado paternalista dos príncipes reformadores; o estado mínimo é hoje reproposto contra o estado assistencial, do qual se deplora que reduza o livre cidadão a súbito protegido; numa palavra, é reproposto contra as novas formas de paternalismo.

Questionando-se sobre a compatibilidade do liberalismo e democracia, o autor assume que os indicadores/observações mostram não ser mais totalmente compatíveis, uma vez que a democracia foi levada às extremas consequências da democracia de massa, ou melhor, dos partidos de massa, cujo resultado é o estado assistencial.

Na última parte do capítulo, Bobbio debruça-se sobre um novo contrato social. Este novo contratualismo moderno descende da caída de uma concepção holística ou orgânica da sociedade (o todo é superior às partes), nasce da ideia de que o ponto de partida de todo programa social de libertação é o sujeito singular com suas paixões  (a serem dirigidas ou domadas), com seus interesses  (a serem regulados e coordenados), com suas necessidades  (a serem satisfeitas ou reprimidas).

A suposição de que parte o contratualismo moderno é o estado de natureza, um estado no qual existem apenas sujeitos separados mas dispostos a se agrupar em sociedade para defender a própria vida e a própria liberdade. Partindo desta hipótese, a sociedade política torna-se um subterfúgio, um projecto a ser edificado e reedificado constantemente, um projecto nunca definitivo, a ser submetido à ininterrupta verificação.

A contemporaneidade do tema contratualista subordina-se também ao facto de que as sociedades poliárquicas, como são aquelas em que vivemos, simultaneamente capitalistas e democráticas, são sociedades nas quais grande parte das deliberações colectivas é tomada através de transacções que terminam em pactos; são sociedades, em suma, nas quais o contrato social não é mais uma hipótese racional, mas uma ferramenta de governo continuamente praticada.

Capítulo 6: Contrato e contratualismo no debate actual

Este capítulo destaca o neocontratualismo. Para Bobbio, a teoria do estado recente está toda concentrada na lei como essencial fonte de estandardização das relações de coexistência, em contraposição à figura do contrato, cuja força regular está subordinada à da lei, se explícita apenas nos limites de validade estabelecidos pela lei e, além do mais reaparece, sob a forma de direito pactício, nos casos em que a soberania do estado singular se choca com a idêntica soberania dos demais estados.

Numa sociedade democrática, diz ele, as forças políticas são os partidos ordenados – preparados acima de tudo para perseguir os votos, para procurar obter o maior número possível deles. São os partidos que solicitam e obtêm o consenso. Deles depende a maior ou menor legitimação do sistema político como um todo.

Este consenso através do voto é uma prestação positiva e, uma prestação positiva solicita geralmente uma contraprestação. Prestação e contraprestação são os elementos dos contratos bilaterais. Nestes acordos, a prestação da parte dos eleitores é o voto, a contraprestação da parte do eleito é uma vantagem (sob a forma de um bem ou de um serviço) ou a isenção de uma desvantagem.

A diferença entre a relação que se instaura entre eleitos e eleitores e a relação que se instaura entre um e outro grupo político revela-se também nas duas diversas capacidades que o bom político deve ter: na conduta da primeira, bem mais a do empresário; na da segunda, bem mais a do negociador. As qualidades do bom empresário são necessárias ao secretário-geral do partido, as do negociador ao presidente do conselho de ministros.

Ainda sobre o neocontratualismo, o autor aponta que uma das razões do desaparecimento das teorias contratualistas, entre o fim do Setecentos e o fim do Oitocentos, derivou da ideia de que o estado fosse uma coisa elevada demais para poder ser explicado como o produto artificial de um acordo entre indivíduos. Exactamente porque a teoria do contrato social se apoia sobre argumentos racionais e está ligada ao nascimento da democracia (mesmo se nem todas as teorias contratualistas são democráticas), o seu desaparecimento jamais chegou a ser total.

No entanto, quando hoje se fala de neocontratualismo com referência às teorias do contrato social, deve ficar bem claro, avança Bobbio, que uma coisa é o problema de uma refundação da sociedade à base do modelo contratualista, outra coisa é o tema do estilhaçamento do poder central em tantos poderes difusos e geralmente antagónicos, com o consequente nascimento dos assim chamados governos parciais e das relações naturalmente de tipo contratual entre uns e outros.

Em geral, o neocontratualismo, isto é, a proposta de um novo pacto social, global e não parcial, de pacificação geral e de fundação de um novo ordenamento social, uma verdadeira “nova aliança”, nasce exactamente da constatação da debilidade crónica de que dá provas o poder público nas sociedades económica e politicamente mais desenvolvidas, ou então – para usar uma palavra corrente – da crescente ingovernabilidade das sociedades complexas, remata.

Capítulo 7: Governo dos homens ou governo das leis

Neste último capítulo, Bobbio procura responder a questão qual o melhor governo, o das leis ou o dos homens? Ou posto de outra maneira, Bom governo é aquele em que os governantes são bons porque governam respeitando as leis ou aquele em que existem boas leis porque os governantes são sábios?
Primeiramente, Bobbio apresenta o primado da lei, que está fundado sobre o pressuposto de que os governantes sejam maus, no sentido de que tendem a usar o poder em benefício próprio. Vice-versa, o primado do homem está fundado sobre o pressuposto do bom governante, cujo tipo ideal, entre os antigos, era o grande legislador.

Entretanto, a resposta à questão – diz – por muito tempo predominante no curso dos séculos, foi em favor da superioridade do governo das leis, que acabou por ser geralmente negativo e bastante discutido.

Os critérios com os quais o bom governo foi distinguido do mau governo são sobretudo dois: o governo para o bem comum distinguido do governo para o próprio bem; o governo segundo leis estabelecidas – sejam elas as leis naturais ou divinas, ou as normas de costume ou as leis positivas postas pelos predecessores e tornadas hábitos do país – distinguido do governo arbitrário, cujas decisões são tomadas de vez em vez, fora de qualquer regra pré-constituída. Disto derivam duas figuras distintas mas não dissemelhantes de governante odioso: o tirano que usa o poder para satisfazer os próprios desejos ilícitos, de que fala Platão no livro IX da República; e o senhor que estabelece leis para si mesmo, ou seja, o autocrata no sentido etimológico da palavra.

A conclusão em que se depreende o autor, aliás, no que tange a sua preferência, vai para o governo das leis, não para o governo dos homens. Segundo Bobbio, o governo das leis celebra actualmente o próprio sucesso na democracia. E o que é a democracia se não um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue? E em que consiste o bom governo democrático se não, acima de tudo, no rigoroso respeito a estas regras? Tomando partido, o autor não tem dúvidas sobre a resposta à estas questões. E exactamente porque não tem dúvidas, conclui serenamente que a democracia é o governo das leis por excelência.

Referência

Bobbio, Norberto (1986), O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo. Paz e Terra: Rio de Janeiro. 

3 comentários:

  1. artigo muito bem elaborado. Sintetizou as principais prerrogativas do livro.

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  2. Irá me ajudar muito na prova! Continue publicando! Parabéns!

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